Num janeiro como este do ano passado, na Assembleia da República, em Portugal, discutia-se Cabral. O Colóquio Amílcar Cabral e a História do Futuro, integrado no projeto CROME, um projeto de pesquisa sobre as memórias da guerra colonial e das lutas de libertação no contexto da colonização portuguesa em África, coordenado por Miguel Cardina, reuniu um conjunto de pesquisadores que dialogam com o pensamento cabralista nos seus trabalhos científicos e artísticos. Participei no painel sobre Política, Cultura e Utopia, falando sobre a influência das suas ideias no desenvolvimento de várias dimensões da minha pesquisa e, como não podia deixar de ser, da já tradicional Marxa Cabral, este ano na sua 12ª edição.
A Marxa, por mim conceptualizada como um movimento social, emergido no seio do hip-hop praiense em janeiro de 2010 pelas mãos do falecido artivista Dudu Rodrigues, fundador da associação Djuntarti, foi e continua a ser uma ação de insubordinação política e simbólica. Criada num contexto de crise identitária e de reinterpretação da história a partir do cânone eurocêntrico, é resgatada em 2013 pela Korrenti Ativizta, tendo se tornado num marcante espaço sociopolítico e identitário de organizações cabo-verdianas de inspiração pan-africana. Antes desta retomada, entre os anos de 2011 e 2012, o Parlamento Gueto funcionou como esse espaço, juntando thugs, hip-hoppers e ativistas comunitários, em ações de reflexão e promoção da paz, no sentido que Johan Galtung dá o termo. Talvez por isso, a Marxa tem sido estigmatizada e nos últimos anos reprimida pelas autoridades policiais. Contudo, com a sua integração este ano nas celebrações do centenário de nascimento de Cabral, coordenado pela Fundação Amílcar Cabral, creio que tais episódios, uma recorrência desde 2019, não ocorram.
O único perigo, se calhar, é o risco da sua colonização e aproveitamento político-partidário e/ou institucional, tal como aconteceu com o Parlamento Gueto, o que precipitou a sua descredibilização. Infortunadamente, em Cabo Verde, as entidades de poder institucional, nomeadamente os da esfera local e central, fruto do espírito colonial que os forjaram, não lidam muito bem com pessoas e movimentos que não conseguem controlar, arranjando por isso estratégias para o seu cancelamento ou liquidação social. Já vimos isto acontecer com o Parlamento Gueto, mas também com as primeiras edições da Marxa (a partir de 2013) e mais recentemente com a Rede das Associações Comunitárias e Movimentos Sociais. De igual modo e isso é importante ressaltar, tal situação ocorre, também, sobretudo, devido à despolitização de muitos jovens e coletivos que incorporam estes movimentos, num contexto marcado pela carência de recursos e de segregação do acesso às oportunidades.
O que muitos não sabem, inclusive uma parte dos atuais protagonistas da Marxa, é que a colaboração entre os coletivos socio-juvenis, a Fundação Amílcar Cabral e a CMP não são uma novidade. A Marxa de 2010 nasceu desse “casamento”. Vivíamos um período de altos índices de ocorrências criminais e da aderência de muitos jovens, na sua maioria provenientes da “periferia”, à cultura de patins de linha, que fizeram da Praça Alexandre Albuquerque a sua pista desportiva, criando uma situação de tensão com alguns moradores do Plateau, que tinham nesta praça um espaço de lazer no final do dia. Assim sendo, rapidamente, a guerra ao crime se estendeu a este estilo de vida urbana, só terminada com a inauguração em janeiro de 2011 do Parque Radical da Praia, edificada pela CMP, no Parque 5 de Julho.
Esta edição zero da Marxa e as subsequentes apropriam-se destas lutas e do discurso da promoção da paz, transformando-se num espaço de reivindicação juvenil, social, cultural e, sobretudo, de direito à cidade. Encontrou na Fundação Amílcar Cabral, na figura da falecida ativista Samira Pereira, uma importante aliada, bem como na então liderança da Direção da Juventude da CMP. É forçoso lembrar que este Departamento municipal tinha na agenda o Programa de Verão, uma das mais importantes medidas políticas juvenis e culturais implementadas na Praia, que embora de cariz pontual, acreditava na potencialidade juvenil e comunitária, tendo, por isso, servido como berço de muitos hoje nominados artistas e criativos, bem como contribuiu para a consolidação de um sentimento de autoestima em muitos bairros da cidade. Foi, desta feita, uma parceria socialmente engajada e politicamente comprometida, completamente despartidarizada e de gestão horizontal. Daí o seu enorme sucesso.
Estas e outras manifestações coletivas críticas e criativas, incluído o universo thug, tiveram um enorme impacto no meu processo de suicídio epistemológico e de adoção do realismo materialista radical de Amílcar Cabral como uma pertinente ferramenta analítica de olhar a sociedade cabo-verdiana em geral e santiaguense em particular. Como grande parte de cabo-verdianos da minha geração, a figura de Cabral que nos foi mostrada no ensino primário e na OPAD-CV era de uma entidade mítica. Sendo assim, a utilização do cabralismo enquanto ferramenta analítica obrigava a um estudo aprofundado de suas ideias e do contributo da sua obra na teoria social crítica. O cruzamento da leitura de Cabral com outros intelectuais e narrativas de Tupac apropriadas por estes jovens, com quem discutia questões como transformação social, natureza humana, história, colonialismo, opressão, violência e resistência, conduziu-me ao universo bibliográfico da tradição radical negra e da tradição africana de teoria crítica.
Apesar do trabalho de Cabral tenha conservado um quadro analítico europeu, combinando os elementos do marxismo clássico com a teoria da dependência neomarxista, é notória a aproximação teórica da sua obra ao marxismo negro desenvolvido por Cedric J. Robinson. Por um lado, ao identificar as raízes do pensamento radical negro em uma epistemologia compartilhada entre diversos povos africanos e, por outro, ao defender que as vagas da resistência camponesa na Guiné-Bissau e em Cabo Verde foram movidas não por uma crítica estruturada por conceções ocidentais de liberdade, mas pela total rejeição ao colonialismo e ao racismo vivenciado. Portanto, não obstante o seu pensamento conter contradições resultantes do choque entre os dois paradigmas de conhecimento que o moldaram, levou-o, em determinados momentos analíticos, a distanciar-se das categorias teóricas hegemónicas, enquanto noutros as mantinha. De igual maneira, fez com que defendesse na sua análise aquilo a que chamou de princípios de assimilação crítica: “quer dizer, daquilo que é dos outros distinguirmos o que pode servir para a nossa terra e o que não pode servir, para acumular experiência e criar”. Jean-Marc Ela, denominou este exercício epistemológico de ciência mestiça: “uma ciência produzida através das perspetivas cruzadas onde as sociedades e as culturas se confrontam. Trata-se aqui de aprender com o outro, aprendendo de igual modo a interrogar-se acerca de si próprio. Esta atitude exige a recusa de se assumir a si mesmo como um centro de conhecimento”.
Logo, o diálogo com estes movimentos, tendo Cabral e vários outros autores radicais africanos, negros e críticos como fio condutor, fez-me perceber que a rutura e a divergência com o pensamento eurocêntrico institucionalizado em Cabo Verde passaria pela utilização de uma epistemologia anarquista que desofuscasse os artifícios da história das ciências e questionasse o dogmatismo oculto com vista à renovação do debate sobre a razão, de modo que se abra o caminho para a emergência de uma abordagem plural da ciência, diferente da perspetiva da história por encomenda ou única associada às demandas das agências internacionais.
Nesta ótica, tenho para mim que fenómenos como Marxa Cabral, ao simbolizarem a fala do subalternizado e representarem o “mundo de baixo”, oferecem aos pesquisadores cabo-verdianos alguns elementos essenciais para a construção de uma agenda endógena de conhecimento. Não é de resto à-toa que Jean-Marc Ela alerta aos pesquisadores africanos a terem em atenção estes tipos de manifestações, que estendo aos agentes e instituições cabo-verdianas. Como já escrevi em relação à Rede das Associações Comunitárias e Movimentos Sociais, a partir do momento que se tomam os movimentos contestatários como competidores, em vez de colaboradores, a democracia e a tão propalada política de proximidade não passará de meros discursos de conveniência e corre-se o risco de levar estas organizações a transformarem-se em estruturas guiadas pelo ressentimento, com todas as consequências sociais que dali possam derivar.
Posto isto e em jeito de conclusão diria que Cabral, entendida como uma entidade intelectual, mas também simbólica, não tem dono. Antecipando o discurso daqueles que Abel Djassi Amado concebeu como movimentos anti-cabralistas, que consideram o seu pensamento como uma fraude, sem de fato conhecerem na profundidade o seu alcance teórico e metodológico, a Marxa Cabral, principalmente esta a ser organizada a 20 de janeiro, é igualmente uma manifestação que não tem domo. É e espero que continue a ser uma demonstração social, cultural e política aberta à participação cívica de todas as pessoas, independentemente da sua cor político-partidária, crença religiosa e nacionalidade.
Publicado no Jornal A Nação, n. 855, 18 de janeiro de 2024, Etc. pp. 8-9.
A Marxa, por mim conceptualizada como um movimento social, emergido no seio do hip-hop praiense em janeiro de 2010 pelas mãos do falecido artivista Dudu Rodrigues, fundador da associação Djuntarti, foi e continua a ser uma ação de insubordinação política e simbólica. Criada num contexto de crise identitária e de reinterpretação da história a partir do cânone eurocêntrico, é resgatada em 2013 pela Korrenti Ativizta, tendo se tornado num marcante espaço sociopolítico e identitário de organizações cabo-verdianas de inspiração pan-africana. Antes desta retomada, entre os anos de 2011 e 2012, o Parlamento Gueto funcionou como esse espaço, juntando thugs, hip-hoppers e ativistas comunitários, em ações de reflexão e promoção da paz, no sentido que Johan Galtung dá o termo. Talvez por isso, a Marxa tem sido estigmatizada e nos últimos anos reprimida pelas autoridades policiais. Contudo, com a sua integração este ano nas celebrações do centenário de nascimento de Cabral, coordenado pela Fundação Amílcar Cabral, creio que tais episódios, uma recorrência desde 2019, não ocorram.
O único perigo, se calhar, é o risco da sua colonização e aproveitamento político-partidário e/ou institucional, tal como aconteceu com o Parlamento Gueto, o que precipitou a sua descredibilização. Infortunadamente, em Cabo Verde, as entidades de poder institucional, nomeadamente os da esfera local e central, fruto do espírito colonial que os forjaram, não lidam muito bem com pessoas e movimentos que não conseguem controlar, arranjando por isso estratégias para o seu cancelamento ou liquidação social. Já vimos isto acontecer com o Parlamento Gueto, mas também com as primeiras edições da Marxa (a partir de 2013) e mais recentemente com a Rede das Associações Comunitárias e Movimentos Sociais. De igual modo e isso é importante ressaltar, tal situação ocorre, também, sobretudo, devido à despolitização de muitos jovens e coletivos que incorporam estes movimentos, num contexto marcado pela carência de recursos e de segregação do acesso às oportunidades.
O que muitos não sabem, inclusive uma parte dos atuais protagonistas da Marxa, é que a colaboração entre os coletivos socio-juvenis, a Fundação Amílcar Cabral e a CMP não são uma novidade. A Marxa de 2010 nasceu desse “casamento”. Vivíamos um período de altos índices de ocorrências criminais e da aderência de muitos jovens, na sua maioria provenientes da “periferia”, à cultura de patins de linha, que fizeram da Praça Alexandre Albuquerque a sua pista desportiva, criando uma situação de tensão com alguns moradores do Plateau, que tinham nesta praça um espaço de lazer no final do dia. Assim sendo, rapidamente, a guerra ao crime se estendeu a este estilo de vida urbana, só terminada com a inauguração em janeiro de 2011 do Parque Radical da Praia, edificada pela CMP, no Parque 5 de Julho.
Esta edição zero da Marxa e as subsequentes apropriam-se destas lutas e do discurso da promoção da paz, transformando-se num espaço de reivindicação juvenil, social, cultural e, sobretudo, de direito à cidade. Encontrou na Fundação Amílcar Cabral, na figura da falecida ativista Samira Pereira, uma importante aliada, bem como na então liderança da Direção da Juventude da CMP. É forçoso lembrar que este Departamento municipal tinha na agenda o Programa de Verão, uma das mais importantes medidas políticas juvenis e culturais implementadas na Praia, que embora de cariz pontual, acreditava na potencialidade juvenil e comunitária, tendo, por isso, servido como berço de muitos hoje nominados artistas e criativos, bem como contribuiu para a consolidação de um sentimento de autoestima em muitos bairros da cidade. Foi, desta feita, uma parceria socialmente engajada e politicamente comprometida, completamente despartidarizada e de gestão horizontal. Daí o seu enorme sucesso.
Estas e outras manifestações coletivas críticas e criativas, incluído o universo thug, tiveram um enorme impacto no meu processo de suicídio epistemológico e de adoção do realismo materialista radical de Amílcar Cabral como uma pertinente ferramenta analítica de olhar a sociedade cabo-verdiana em geral e santiaguense em particular. Como grande parte de cabo-verdianos da minha geração, a figura de Cabral que nos foi mostrada no ensino primário e na OPAD-CV era de uma entidade mítica. Sendo assim, a utilização do cabralismo enquanto ferramenta analítica obrigava a um estudo aprofundado de suas ideias e do contributo da sua obra na teoria social crítica. O cruzamento da leitura de Cabral com outros intelectuais e narrativas de Tupac apropriadas por estes jovens, com quem discutia questões como transformação social, natureza humana, história, colonialismo, opressão, violência e resistência, conduziu-me ao universo bibliográfico da tradição radical negra e da tradição africana de teoria crítica.
Apesar do trabalho de Cabral tenha conservado um quadro analítico europeu, combinando os elementos do marxismo clássico com a teoria da dependência neomarxista, é notória a aproximação teórica da sua obra ao marxismo negro desenvolvido por Cedric J. Robinson. Por um lado, ao identificar as raízes do pensamento radical negro em uma epistemologia compartilhada entre diversos povos africanos e, por outro, ao defender que as vagas da resistência camponesa na Guiné-Bissau e em Cabo Verde foram movidas não por uma crítica estruturada por conceções ocidentais de liberdade, mas pela total rejeição ao colonialismo e ao racismo vivenciado. Portanto, não obstante o seu pensamento conter contradições resultantes do choque entre os dois paradigmas de conhecimento que o moldaram, levou-o, em determinados momentos analíticos, a distanciar-se das categorias teóricas hegemónicas, enquanto noutros as mantinha. De igual maneira, fez com que defendesse na sua análise aquilo a que chamou de princípios de assimilação crítica: “quer dizer, daquilo que é dos outros distinguirmos o que pode servir para a nossa terra e o que não pode servir, para acumular experiência e criar”. Jean-Marc Ela, denominou este exercício epistemológico de ciência mestiça: “uma ciência produzida através das perspetivas cruzadas onde as sociedades e as culturas se confrontam. Trata-se aqui de aprender com o outro, aprendendo de igual modo a interrogar-se acerca de si próprio. Esta atitude exige a recusa de se assumir a si mesmo como um centro de conhecimento”.
Logo, o diálogo com estes movimentos, tendo Cabral e vários outros autores radicais africanos, negros e críticos como fio condutor, fez-me perceber que a rutura e a divergência com o pensamento eurocêntrico institucionalizado em Cabo Verde passaria pela utilização de uma epistemologia anarquista que desofuscasse os artifícios da história das ciências e questionasse o dogmatismo oculto com vista à renovação do debate sobre a razão, de modo que se abra o caminho para a emergência de uma abordagem plural da ciência, diferente da perspetiva da história por encomenda ou única associada às demandas das agências internacionais.
Nesta ótica, tenho para mim que fenómenos como Marxa Cabral, ao simbolizarem a fala do subalternizado e representarem o “mundo de baixo”, oferecem aos pesquisadores cabo-verdianos alguns elementos essenciais para a construção de uma agenda endógena de conhecimento. Não é de resto à-toa que Jean-Marc Ela alerta aos pesquisadores africanos a terem em atenção estes tipos de manifestações, que estendo aos agentes e instituições cabo-verdianas. Como já escrevi em relação à Rede das Associações Comunitárias e Movimentos Sociais, a partir do momento que se tomam os movimentos contestatários como competidores, em vez de colaboradores, a democracia e a tão propalada política de proximidade não passará de meros discursos de conveniência e corre-se o risco de levar estas organizações a transformarem-se em estruturas guiadas pelo ressentimento, com todas as consequências sociais que dali possam derivar.
Posto isto e em jeito de conclusão diria que Cabral, entendida como uma entidade intelectual, mas também simbólica, não tem dono. Antecipando o discurso daqueles que Abel Djassi Amado concebeu como movimentos anti-cabralistas, que consideram o seu pensamento como uma fraude, sem de fato conhecerem na profundidade o seu alcance teórico e metodológico, a Marxa Cabral, principalmente esta a ser organizada a 20 de janeiro, é igualmente uma manifestação que não tem domo. É e espero que continue a ser uma demonstração social, cultural e política aberta à participação cívica de todas as pessoas, independentemente da sua cor político-partidária, crença religiosa e nacionalidade.
Publicado no Jornal A Nação, n. 855, 18 de janeiro de 2024, Etc. pp. 8-9.