Nota um: recentemente tornaram-se públicos os resultados dos inquéritos do Afrobarometer referentes ao ano de 2024, em que as pessoas inquiridas fizeram uma avaliação negativa ao desemprenho do governo em matéria económica. Ainda que ao olhar de fora estes dados possam parecer contraditórios face ao crescimento económico de 4,7%, que coloca Cabo Verde nos dez países africanos com maior PIB per capita, como já demonstrado em vários estudos a nível internacional, o aumento do PIB não implica necessariamente o aumento do bem-estar da população. Não obstante ser um feito positivo, a distribuição de rendimento, no entanto, continua desigual. Do mesmo modo, o aumento do PIB não significa a melhoria das condições de vida ou qualidade do emprego. Nos anos de 1990, por exemplo, o país vivenciou um crescimento económico com uma média anual acima dos 8%, mas como tal não impediu o aumento da desigualdade social. O que os dados do Afrobarometer indiciam é que o PIB não passa de um indicador quantitativo, que foca no tamanho na economia e não na sua qualidade. As 65% das pessoas inquiridas ao reprovarem as políticas económicas do governo quiseram dizer isso mesmo. Com isto não quero escamotear o fato do governo ter avançado com um conjunto de medidas políticas direcionadas às populações tidas como vulneráveis. Mas, quando 84% da população inquirida considera que as políticas governamentais implementadas têm sido incapazes de reduzir a diferença entre os ricos e os pobres e 78% que elas não têm contribuído para a melhoria das condições de vida da população pobre, tal há que ser levado em consideração. Isto porque os salários continuam baixos (em 2022 o salário médio em Cabo Verde era de cerca de 33 contos – cerca de 299,3 euros) e o nível de vida subiu de forma galopante, desencadeando um processo de empobrecimento, sobretudo da população tida pertencente à dita “classe média”. Uma realidade hoje bem visível no setor de habitação, que face a processos simultâneos de gentrificação, turistificação (sobretudo da orla marítima) e airbnbficação (um upload da gentrificação nas zonas centrais das principais cidades), observa-se que famílias comuns estão cada vez com maiores dificuldades em conseguir pagar uma renda justa em casas edificadas nos bairros e/ou subzonas com melhores condições de urbanidade.
Nota dois: um outro ponto focado pelo Afrobarometer é o das migrações. Os dados apontam que mais de 60% dos cabo-verdianos têm a pretensão de emigrar. Fazendo uso de um outro estudo realizado em Portugal e que dá conta de que 70% dos estudantes universitários portugueses tencionam emigrar, alguns deputados, militantes e simpatizantes do partido que sustenta o governo inundaram as redes sociais com postagens irrefletidas, questionando a seriedade dos pesquisadores e analistas que tem relacionado a fuga para fora dos cabo-verdianos ao pessimismo saliente nos indicadores sociais e económicas produzidas pelo Afrobarometer. Não há qualquer dúvida que se está perante um fenómeno de tendência mundial – a fuga da população dos países que a literatura positivista chama de subdesenvolvidos e em vias de desenvolvimento para os ditos mais desenvolvidos. Ou melhor, uma fuga do Sul em direção ao Norte. Contudo, no caso cabo-verdiano, é evidente que mesmo tendo o povo das ilhas uma disposição migratória já bastante naturalizada, se olharmos para a história migratória do país e nos seus picos de maior relevância, percebemos que esta nova vaga se encontra ao nível da ocorrida no período dos baleeiros rumo aos EUA, no tempo das roças de São Tomé e Angola ou entre os anos de 1960 e 1980 rumo aos Países Baixos e Portugal (este último a servir de porta de entrada para os demais destinos europeus, função que volta a repetir). Ainda que o perfil dos que desejam sair do país continua a ser o do jovem desempregado, é preciso ter em conta que no rol dos que pretendem sair estão pessoas com formação superior (64%), com idade compreendida entre os 45 e 55 anos (74%) e empregados a tempo inteiro (62%). Ou seja, estamos perante uma perda qualitativa (de competência e de experiência) dos recursos humanos – uma fuga aos baixos salários, às más condições de trabalho e estagnação profissional.
Convém contextualizar. Em 2022, Portugal assinou com Cabo Verde um acordo de parceria para a implementação do projeto integrado de emprego e formação profissional, condição imposta pela cooperação portuguesa para que o IEFP cabo-verdiano continue a ter acesso ao apoio técnico e financeiro. Isto abriu a porta de pandora da emigração, sobretudo da camada juvenil. Curiosamente, este evento coincidiu com o consenso à volta do acordo de mobilidade no interior da CPLP, com o objetivo de, como no passado, vir colmatar a fuga, em especial dos jovens, de Portugal que, segundo um estudo recente, precisa anualmente de mais de mil imigrantes (para repor o défice demográfico e ocupar os postos de trabalhos abandonados). Porém, ao contrário do antigamente, trata-se hoje de uma exportação de mão-de-obra qualificada – uma estratégia neocolonial de extrativismo intelectual e técnico. Diga-se, com conluio do governo arquipelágico, que mina assim o seu próprio discurso estribado na ideologia desenvolvimentista.
Nota três: os dados do Afrobarometer apontam desde 2005 o desemprego como a maior preocupação dos cabo-verdianos, com 83% dos inquiridos em 2024 a afirmarem que o governo não tem conseguido criar condições para a criação do emprego. É de ressaltar que 82% da população desempregada (e que andam à procura do emprego) tencionam emigrar. Esquece-se, todavia, que o problema do mercado de trabalho em Cabo Verde, mais do que o desemprego, é o subemprego, ou melhor dito, a exploração laboral. É importante ressaltar que, metodologicamente, basta que alguém tenha realizado pontualmente um trabalho, seja de que tipo for, ou como se diz na Praia, ki panha un txapu na mô, mesmo que a renumeração não seja monetária, é contabilizado pelo INE como empregado. Sem falar do caso dos estagiários, que muitas vezes nem sequer têm um salário, mas são mesmo assim contabilizados como empregados. Logo, falar de diminuição da taxa de desemprego em Cabo Verde é sempre um exercício bastante forçado.
Nota quatro: é com alguma piada que se observa que as mesmas pessoas que utilizaram os dados do Afrobarometer antes de 2016 para denunciarem, com razão, a má governação do governo anterior, hoje, no poleiro, põe os dados produzidos por esta mesma entidade em causa. Outros os há que acham necessário dados de entidades diferentes que possam contrapor os agora apresentados. Desconhecem ou não, que o INE, instituição de referência nacional e do Estado, produziu entre 2013 e 2023 três relatórios sobre justiça, segurança e paz, e tal como os dados do Afrobarometer, indicam descrença na governação do país de há uns 10-15 anos para cá.
Sendo certo que a democracia continua a ser o regime político que os cabo-verdianos mais acreditam, também é uma evidência que aumentou para quase 30% a abertura da população a uma provável intervenção militar em caso de abuso de poder da classe política. Penso que tal indicador deve ser lido com preocupação e não descredibilizada por parte de pessoas que só podem ser percebidas como estando a habitar numa bolha partidária ou mesmo elitista. Sendo as Forças Armadas a instituição com maior credibilidade no país (embora com uma ligeira quebra de confiança face aos últimos acontecimentos a má gestão dos mesmos), é com alguma naturalidade que ela é vista como uma entidade estabilizadora. Ainda mais quando há um aumento da perceção de impunidade e da ideia de que a justiça serve apenas para punir a população mais vulnerável, corroborada pela baixa taxa de processos resolvidos nos tribunais e pelo perfil socioeconómico da população prisional. O que se observa é que não se pode desligar a abertura da população inquirida a uma suposta intervenção militar da quebra de confiança nas instituições nacionais e na democracia. De 2011 aos nossos dias a confiança no parlamento e no executivo caíram 29%, nos tribunais 27% e na presidência e nos poderes municipais 26%. Entre 2011 e 2013, a satisfação com a democracia era de 45% e caiu em 2023 para 27%. Mais de 70% das pessoas inquiridas acreditam que a classe política governa conforme o seu interesse e, deste modo, não as representa. E isto deve ser ligado ao aumento da perceção da corrupção, ainda que o país esteja bem posicionado no contexto da CPLP, se a referência for o último índice da corrupção. Todavia, penso interessar mais o que os cabo-verdianos a residir no país acham sobre o assunto, do que os indicadores vindos de fora para dentro, sabendo nós da forma como são produzidos em termos metodológicos. Mesmo tendo em conta o efeito de contágio das desinformações e das tentativas de assassinato de carácter que encontraram nas redes sociais um terreno fértil, quem faz pesquisa de terreno ou esteja criticamente atendo, tem uma mínima noção da realidade. Aliás, em Cabo Verde, falar de corrupção é falar de “expediente” e “connections”, estando o primeiro dependente obrigatoriamente ao segundo.
Como é evidente, são situações que fazem florescer um discurso populista e demagogo. O problema é quando se cai no erro analítico de que este tipo de populismo faz parte apenas do aparato ideológico dos movimentos alt-right deste mundo. É certo que chegou às ilhas por essa via, promovido pelas milícias digitais que se dizem defensores da democracia, mas que na prática são tudo menos democráticos. No entanto, observa-se também no seio de uma clique político-partidário da esquerda dita clássica que viu na luta contra o kopu-letismu um emblema ideológico, ainda que orientado e financiado por uma das representantes do mesmo kopu-letismo (que roça a uma nobreza da terra esclavagista e colonialista) que dizem combater. Nesta era pós-ideológica, quer online como offline, a tática utilizada parece ter encontrado nos trumpismos desta vida a sua principal fonte de inspiração. Todavia, o mais espantoso é o papel de uma comunicação social que se diz isenta na promoção desse populismo, que mistura ressentimentos históricos de classe (que até tem alguma razão de ser) e político. É de realçar que não se anda a saber ler os exemplos vindos de outras bandas e só nos resta a máxima popular das ilhas, dipoz ka ten sin sabeba.
Publicado no Buala.
Nota dois: um outro ponto focado pelo Afrobarometer é o das migrações. Os dados apontam que mais de 60% dos cabo-verdianos têm a pretensão de emigrar. Fazendo uso de um outro estudo realizado em Portugal e que dá conta de que 70% dos estudantes universitários portugueses tencionam emigrar, alguns deputados, militantes e simpatizantes do partido que sustenta o governo inundaram as redes sociais com postagens irrefletidas, questionando a seriedade dos pesquisadores e analistas que tem relacionado a fuga para fora dos cabo-verdianos ao pessimismo saliente nos indicadores sociais e económicas produzidas pelo Afrobarometer. Não há qualquer dúvida que se está perante um fenómeno de tendência mundial – a fuga da população dos países que a literatura positivista chama de subdesenvolvidos e em vias de desenvolvimento para os ditos mais desenvolvidos. Ou melhor, uma fuga do Sul em direção ao Norte. Contudo, no caso cabo-verdiano, é evidente que mesmo tendo o povo das ilhas uma disposição migratória já bastante naturalizada, se olharmos para a história migratória do país e nos seus picos de maior relevância, percebemos que esta nova vaga se encontra ao nível da ocorrida no período dos baleeiros rumo aos EUA, no tempo das roças de São Tomé e Angola ou entre os anos de 1960 e 1980 rumo aos Países Baixos e Portugal (este último a servir de porta de entrada para os demais destinos europeus, função que volta a repetir). Ainda que o perfil dos que desejam sair do país continua a ser o do jovem desempregado, é preciso ter em conta que no rol dos que pretendem sair estão pessoas com formação superior (64%), com idade compreendida entre os 45 e 55 anos (74%) e empregados a tempo inteiro (62%). Ou seja, estamos perante uma perda qualitativa (de competência e de experiência) dos recursos humanos – uma fuga aos baixos salários, às más condições de trabalho e estagnação profissional.
Convém contextualizar. Em 2022, Portugal assinou com Cabo Verde um acordo de parceria para a implementação do projeto integrado de emprego e formação profissional, condição imposta pela cooperação portuguesa para que o IEFP cabo-verdiano continue a ter acesso ao apoio técnico e financeiro. Isto abriu a porta de pandora da emigração, sobretudo da camada juvenil. Curiosamente, este evento coincidiu com o consenso à volta do acordo de mobilidade no interior da CPLP, com o objetivo de, como no passado, vir colmatar a fuga, em especial dos jovens, de Portugal que, segundo um estudo recente, precisa anualmente de mais de mil imigrantes (para repor o défice demográfico e ocupar os postos de trabalhos abandonados). Porém, ao contrário do antigamente, trata-se hoje de uma exportação de mão-de-obra qualificada – uma estratégia neocolonial de extrativismo intelectual e técnico. Diga-se, com conluio do governo arquipelágico, que mina assim o seu próprio discurso estribado na ideologia desenvolvimentista.
Nota três: os dados do Afrobarometer apontam desde 2005 o desemprego como a maior preocupação dos cabo-verdianos, com 83% dos inquiridos em 2024 a afirmarem que o governo não tem conseguido criar condições para a criação do emprego. É de ressaltar que 82% da população desempregada (e que andam à procura do emprego) tencionam emigrar. Esquece-se, todavia, que o problema do mercado de trabalho em Cabo Verde, mais do que o desemprego, é o subemprego, ou melhor dito, a exploração laboral. É importante ressaltar que, metodologicamente, basta que alguém tenha realizado pontualmente um trabalho, seja de que tipo for, ou como se diz na Praia, ki panha un txapu na mô, mesmo que a renumeração não seja monetária, é contabilizado pelo INE como empregado. Sem falar do caso dos estagiários, que muitas vezes nem sequer têm um salário, mas são mesmo assim contabilizados como empregados. Logo, falar de diminuição da taxa de desemprego em Cabo Verde é sempre um exercício bastante forçado.
Nota quatro: é com alguma piada que se observa que as mesmas pessoas que utilizaram os dados do Afrobarometer antes de 2016 para denunciarem, com razão, a má governação do governo anterior, hoje, no poleiro, põe os dados produzidos por esta mesma entidade em causa. Outros os há que acham necessário dados de entidades diferentes que possam contrapor os agora apresentados. Desconhecem ou não, que o INE, instituição de referência nacional e do Estado, produziu entre 2013 e 2023 três relatórios sobre justiça, segurança e paz, e tal como os dados do Afrobarometer, indicam descrença na governação do país de há uns 10-15 anos para cá.
Sendo certo que a democracia continua a ser o regime político que os cabo-verdianos mais acreditam, também é uma evidência que aumentou para quase 30% a abertura da população a uma provável intervenção militar em caso de abuso de poder da classe política. Penso que tal indicador deve ser lido com preocupação e não descredibilizada por parte de pessoas que só podem ser percebidas como estando a habitar numa bolha partidária ou mesmo elitista. Sendo as Forças Armadas a instituição com maior credibilidade no país (embora com uma ligeira quebra de confiança face aos últimos acontecimentos a má gestão dos mesmos), é com alguma naturalidade que ela é vista como uma entidade estabilizadora. Ainda mais quando há um aumento da perceção de impunidade e da ideia de que a justiça serve apenas para punir a população mais vulnerável, corroborada pela baixa taxa de processos resolvidos nos tribunais e pelo perfil socioeconómico da população prisional. O que se observa é que não se pode desligar a abertura da população inquirida a uma suposta intervenção militar da quebra de confiança nas instituições nacionais e na democracia. De 2011 aos nossos dias a confiança no parlamento e no executivo caíram 29%, nos tribunais 27% e na presidência e nos poderes municipais 26%. Entre 2011 e 2013, a satisfação com a democracia era de 45% e caiu em 2023 para 27%. Mais de 70% das pessoas inquiridas acreditam que a classe política governa conforme o seu interesse e, deste modo, não as representa. E isto deve ser ligado ao aumento da perceção da corrupção, ainda que o país esteja bem posicionado no contexto da CPLP, se a referência for o último índice da corrupção. Todavia, penso interessar mais o que os cabo-verdianos a residir no país acham sobre o assunto, do que os indicadores vindos de fora para dentro, sabendo nós da forma como são produzidos em termos metodológicos. Mesmo tendo em conta o efeito de contágio das desinformações e das tentativas de assassinato de carácter que encontraram nas redes sociais um terreno fértil, quem faz pesquisa de terreno ou esteja criticamente atendo, tem uma mínima noção da realidade. Aliás, em Cabo Verde, falar de corrupção é falar de “expediente” e “connections”, estando o primeiro dependente obrigatoriamente ao segundo.
Como é evidente, são situações que fazem florescer um discurso populista e demagogo. O problema é quando se cai no erro analítico de que este tipo de populismo faz parte apenas do aparato ideológico dos movimentos alt-right deste mundo. É certo que chegou às ilhas por essa via, promovido pelas milícias digitais que se dizem defensores da democracia, mas que na prática são tudo menos democráticos. No entanto, observa-se também no seio de uma clique político-partidário da esquerda dita clássica que viu na luta contra o kopu-letismu um emblema ideológico, ainda que orientado e financiado por uma das representantes do mesmo kopu-letismo (que roça a uma nobreza da terra esclavagista e colonialista) que dizem combater. Nesta era pós-ideológica, quer online como offline, a tática utilizada parece ter encontrado nos trumpismos desta vida a sua principal fonte de inspiração. Todavia, o mais espantoso é o papel de uma comunicação social que se diz isenta na promoção desse populismo, que mistura ressentimentos históricos de classe (que até tem alguma razão de ser) e político. É de realçar que não se anda a saber ler os exemplos vindos de outras bandas e só nos resta a máxima popular das ilhas, dipoz ka ten sin sabeba.
Publicado no Buala.