O ano de 2010 marcou o início de uma jornada de reflexão crítica em parceria com o sociólogo bissau-guineense Miguel de Barros sobre as condições sociais e de produção de consciência política dos jovens em contextos urbanos de Cabo Verde e Guiné-Bissau. A análise teve como foco as reinterpretações do pensamento de Cabral por parte dos jovens integrantes do movimento hip-hop, mais concretamente seu elemento oral, o rap, tomando como foco a transição do regime do partido único para a democracia liberal e as reconfigurações ideológicas na geração pós-independência. Após quatro artigos científicos publicados e várias colaborações entre 2012 e 2023, introduzimos recentemente a atual conjuntura de retorno mais declarado do projeto colonial euro-americano-asiático em África sob o manto de políticas de cooperação e o avanço do extremismo identitário racista euro-americano e suas extensões atlânticas.
O primeiro aspeto destacado foi a autoidentificação de grande parte dos jovens com o cabralismo, uma vez que se autoproclamavam filhos e netos ideológicos de Cabral, herdeiros legítimos da versão cabralista do pan-africanismo. Sobre o conteúdo do rap em si, três questões se ressaltavam: 1) a preocupação em manter Cabral como referência face aos riscos de branqueamento da memória coletiva; 2) a critica aos “camaradas” e aos atuais governantes perante as opções políticas consideradas alheias ao pensamento político de Cabral; 3) a denúncia do estado da dependência, tida como consentida de matriz ideológica socialista na primeira República e declarada de matriz ideológica híbrida, mas com fortes componentes liberais na segunda. Esta última, intensificada a partir do ano de 2015, num momento de celebração governamental dos 40 anos de independência, com os jovens a adotarem uma postura que ia de encontro aos argumentos teóricos de autores como Frantz Fanon e Achille Mbembe: que a elite política ao alcançar o poder traiu as esperanças da revolução, visto terem substituído o poder colonial por um poder nacional oligárquico servil aos antigos colonos.
Denotava-se nas músicas, portanto, um sentimento de desmoralização social que tinha a ver com a impressão de terem sido enganados e encontrarem-se sub-representados em termos políticos, o que fazia com que as noções de sobrevivência e identidade tivessem sido desvinculadas dos objetivos políticos do Estado e da noção abstrata da democracia. A ideia do falhanço do socialismo como alternativa ao capitalismo e à democracia liberal, conceptualizada por Francis Fukuyama como o fim da história e o triunfo da razão liberal, tirou relevância a muitos ícones revolucionários, substituídos por figuras musicais globais como Bob Marley e Tupac Shakur, destacados como os novos heróis revolucionários negros. Na linha de Eboe Hutchful, constatamos que o que sucedeu foi o contrário do determinado por Fukuyama, na medida em que estas novas figuras revolucionárias potencializaram a libertação de velhas fontes de resistências secundarizadas pela dinâmica do imperialismo.
No caso cabo-verdiano, como observado por Archie Mafeje noutras latitudes africanas, a perceção destes jovens foi de que a ideologia do mercado livre não tinha capacidade real de garantir o tão prometido bem-estar coletivo e oportunidades iguais para todos. Sendo assim, encontraram no revolutionary gangsta rap de Tupac e no pensamento de Cabral uma importante ferramenta de interpelação do poder e de mobilização. A conceptualização cabralista da cultura como um ato de libertação passa assim a ganhar relevância no seio da comunidade hip-hop nacional, com o rap a demarcar-se como o principal veículo de produção de uma visão alternativa da história. Possibilitou, desta maneira, um olhar sobre o processo histórico que contraria o argumento hegemónico de encontro harmonioso dos povos étnicos europeus com os africanos reproduzido pelas elites intelectual e política, centrando-se numa narrativa de encontrão e de profunda disparidade de recursos durante o período de ocupação do arquipélago a partir de Santiago.
Passou-se, deste modo, a um profundo questionamento da história única eurocêntrica legitimada pelas escolas, criando condições para a recuperação de uma personalidade africana sedimentada por evidências científicas que apresentam Cabo Verde como tendo desenvolvido ao longo de cinco séculos da sua história uma resistência cultural ativa contra a dominação portuguesa. Um assunto muito bem argumentado pela historiografia de resistência e de revoltas produzida nos últimos anos, sobretudo, aquelas desencadeadas pelos camponeses santiaguenses, tomadas por Cabral como símbolos da auto-libertação e de resistência.
Atrelados à ideia de retorno às fontes e de (re)africanização dos espíritos e das mentes teorizados por Cabral, este movimento buscou fortalecer uma política identitária de emancipação africana. Ao utilizar estes termos, o teórico da revolução cabo-verdiana e bissau-guineense estava a criticar a desconexão da pequena burguesia forjada pelo processo colonial com as tradições culturais e políticas das massas populares dos contextos rurais e urbanos. Por isso, apelava à elite ao suicídio de classe, de modo a convergirem os seus interesses políticos e materiais com os das massas, acreditando que o espírito da libertação só poderia ser mantido no período pós-independência caso identificassem inteiramente com as aspirações mais profundas do povo a que pertence.
De forma a materializar estas ideias e dar continuidade à luta, o movimento hip-hop da Praia, liderada pela Associação Djuntarti (então liderada pelo artivista Dudu Rodrigues), criou em 2010 a Marxa Cabral, uma manifestação de insubordinação simbólica a partir de uma lógica de empreendedorismo de rua, consolidando o processo de resgate da história de baixo para cima e da figura de Cabral. Retomada em 2013 pelo movimento Korrenti Ativizta, a Marxa tem adquirido força anos após anos e este mês irá se internacionalizar através da iniciativa de um conjunto de coletivos e organizações pan-africanas que constituem o movimento negro português. Posiciona-se, assim, como um dos principais espaços sociopolíticos e identitários de organizações cabo-verdianas juvenis de inspiração cabralista. É preciso ter em conta que a Marxa surge como uma resposta juvenil fora da esfera partidária ao projeto de desafricanização identitária e da memória concretizada nos anos de 1990, mas também contra as tentativas de apagamento, silenciamento e difamação da figura de Cabral ou da sua partidarização.
Contudo, no contexto das ilhas, é visível a tendência de uma lógica meramente culturalista, folclórica até. Ao se concentrarem na imagem icónica de Cabral, está-se, como afirma Abel Djassi Amado, a impedir o desenvolvimento teórico da sua proposta e a não concretização de uma agenda própria, não obstante a mobilização do slogan “pensar pelas próprias cabeças”. Aliás, mutas vezes, o que se observa é um agir não acompanhado por um pensar coerente e consistente. Ou seja, é evidente um gritante estado de despolitização juvenil e ausência de uma agenda comum, o que não quer dizer não haja no seu seio jovens com uma forte consciência política.
Para um melhor entendimento da despolitização da juventude em Cabo Verde (e em África no geral) é obrigatório que se reflita sobre a implementação dos programas de ajustamento estrutural nos anos de 1990, o que desencadeou o processo de ONGuificação da sociedade civil (e da oposição). Isto quer dizer que a reestruturação económica obrigou o Estado a recuar em matéria de políticas sociais, que foram terceirizadas para as organizações da sociedade civil e que passaram a ser financiadas pelas agências de ajuda para o desenvolvimento. Estando dependentes destes financiamentos e pressionadas pelos doadores a se submeterem ao controlo do Estado, é notório a transformação da sociedade civil cabo-verdiana naquilo que Suzano Costa designou de sociedade servil.
A juntar a isso, a promoção do discurso sobre o empoderamento, empreendedorismo e liderança assente nos princípios neoliberais contribuiu para a consolidação da (des)ideologização do debate político, colocando os jovens, seus coletivos e organizações à mercê da colonização político-partidária, numa sociedade que, como salientou Onésimo Silveira, vigora o regime do Estado-do-partido. Isto desencadeou uma profunda crise de conhecimento que, a nosso ver, só se consegue mudar a partir de um intensivo trabalho de politização com vista à libertação das mentes, a que se segue a libertação do ser, do saber e do poder. Afinal, como tão bem sublinhou Cabral, a liberdade não existe para ser doada, mas conquistada. Mas, tal empreitada só pode ser devidamente concretizada pela ação de um movimento político apartidário movido por uma liderança coletiva, orientado por um conhecimento concreto endógeno da realidade e dotado de uma agenda comum própria.
Publicado no Jornal A Nação, n. 890, 19 de setembro de 2024, Etc. p. 8.
O primeiro aspeto destacado foi a autoidentificação de grande parte dos jovens com o cabralismo, uma vez que se autoproclamavam filhos e netos ideológicos de Cabral, herdeiros legítimos da versão cabralista do pan-africanismo. Sobre o conteúdo do rap em si, três questões se ressaltavam: 1) a preocupação em manter Cabral como referência face aos riscos de branqueamento da memória coletiva; 2) a critica aos “camaradas” e aos atuais governantes perante as opções políticas consideradas alheias ao pensamento político de Cabral; 3) a denúncia do estado da dependência, tida como consentida de matriz ideológica socialista na primeira República e declarada de matriz ideológica híbrida, mas com fortes componentes liberais na segunda. Esta última, intensificada a partir do ano de 2015, num momento de celebração governamental dos 40 anos de independência, com os jovens a adotarem uma postura que ia de encontro aos argumentos teóricos de autores como Frantz Fanon e Achille Mbembe: que a elite política ao alcançar o poder traiu as esperanças da revolução, visto terem substituído o poder colonial por um poder nacional oligárquico servil aos antigos colonos.
Denotava-se nas músicas, portanto, um sentimento de desmoralização social que tinha a ver com a impressão de terem sido enganados e encontrarem-se sub-representados em termos políticos, o que fazia com que as noções de sobrevivência e identidade tivessem sido desvinculadas dos objetivos políticos do Estado e da noção abstrata da democracia. A ideia do falhanço do socialismo como alternativa ao capitalismo e à democracia liberal, conceptualizada por Francis Fukuyama como o fim da história e o triunfo da razão liberal, tirou relevância a muitos ícones revolucionários, substituídos por figuras musicais globais como Bob Marley e Tupac Shakur, destacados como os novos heróis revolucionários negros. Na linha de Eboe Hutchful, constatamos que o que sucedeu foi o contrário do determinado por Fukuyama, na medida em que estas novas figuras revolucionárias potencializaram a libertação de velhas fontes de resistências secundarizadas pela dinâmica do imperialismo.
No caso cabo-verdiano, como observado por Archie Mafeje noutras latitudes africanas, a perceção destes jovens foi de que a ideologia do mercado livre não tinha capacidade real de garantir o tão prometido bem-estar coletivo e oportunidades iguais para todos. Sendo assim, encontraram no revolutionary gangsta rap de Tupac e no pensamento de Cabral uma importante ferramenta de interpelação do poder e de mobilização. A conceptualização cabralista da cultura como um ato de libertação passa assim a ganhar relevância no seio da comunidade hip-hop nacional, com o rap a demarcar-se como o principal veículo de produção de uma visão alternativa da história. Possibilitou, desta maneira, um olhar sobre o processo histórico que contraria o argumento hegemónico de encontro harmonioso dos povos étnicos europeus com os africanos reproduzido pelas elites intelectual e política, centrando-se numa narrativa de encontrão e de profunda disparidade de recursos durante o período de ocupação do arquipélago a partir de Santiago.
Passou-se, deste modo, a um profundo questionamento da história única eurocêntrica legitimada pelas escolas, criando condições para a recuperação de uma personalidade africana sedimentada por evidências científicas que apresentam Cabo Verde como tendo desenvolvido ao longo de cinco séculos da sua história uma resistência cultural ativa contra a dominação portuguesa. Um assunto muito bem argumentado pela historiografia de resistência e de revoltas produzida nos últimos anos, sobretudo, aquelas desencadeadas pelos camponeses santiaguenses, tomadas por Cabral como símbolos da auto-libertação e de resistência.
Atrelados à ideia de retorno às fontes e de (re)africanização dos espíritos e das mentes teorizados por Cabral, este movimento buscou fortalecer uma política identitária de emancipação africana. Ao utilizar estes termos, o teórico da revolução cabo-verdiana e bissau-guineense estava a criticar a desconexão da pequena burguesia forjada pelo processo colonial com as tradições culturais e políticas das massas populares dos contextos rurais e urbanos. Por isso, apelava à elite ao suicídio de classe, de modo a convergirem os seus interesses políticos e materiais com os das massas, acreditando que o espírito da libertação só poderia ser mantido no período pós-independência caso identificassem inteiramente com as aspirações mais profundas do povo a que pertence.
De forma a materializar estas ideias e dar continuidade à luta, o movimento hip-hop da Praia, liderada pela Associação Djuntarti (então liderada pelo artivista Dudu Rodrigues), criou em 2010 a Marxa Cabral, uma manifestação de insubordinação simbólica a partir de uma lógica de empreendedorismo de rua, consolidando o processo de resgate da história de baixo para cima e da figura de Cabral. Retomada em 2013 pelo movimento Korrenti Ativizta, a Marxa tem adquirido força anos após anos e este mês irá se internacionalizar através da iniciativa de um conjunto de coletivos e organizações pan-africanas que constituem o movimento negro português. Posiciona-se, assim, como um dos principais espaços sociopolíticos e identitários de organizações cabo-verdianas juvenis de inspiração cabralista. É preciso ter em conta que a Marxa surge como uma resposta juvenil fora da esfera partidária ao projeto de desafricanização identitária e da memória concretizada nos anos de 1990, mas também contra as tentativas de apagamento, silenciamento e difamação da figura de Cabral ou da sua partidarização.
Contudo, no contexto das ilhas, é visível a tendência de uma lógica meramente culturalista, folclórica até. Ao se concentrarem na imagem icónica de Cabral, está-se, como afirma Abel Djassi Amado, a impedir o desenvolvimento teórico da sua proposta e a não concretização de uma agenda própria, não obstante a mobilização do slogan “pensar pelas próprias cabeças”. Aliás, mutas vezes, o que se observa é um agir não acompanhado por um pensar coerente e consistente. Ou seja, é evidente um gritante estado de despolitização juvenil e ausência de uma agenda comum, o que não quer dizer não haja no seu seio jovens com uma forte consciência política.
Para um melhor entendimento da despolitização da juventude em Cabo Verde (e em África no geral) é obrigatório que se reflita sobre a implementação dos programas de ajustamento estrutural nos anos de 1990, o que desencadeou o processo de ONGuificação da sociedade civil (e da oposição). Isto quer dizer que a reestruturação económica obrigou o Estado a recuar em matéria de políticas sociais, que foram terceirizadas para as organizações da sociedade civil e que passaram a ser financiadas pelas agências de ajuda para o desenvolvimento. Estando dependentes destes financiamentos e pressionadas pelos doadores a se submeterem ao controlo do Estado, é notório a transformação da sociedade civil cabo-verdiana naquilo que Suzano Costa designou de sociedade servil.
A juntar a isso, a promoção do discurso sobre o empoderamento, empreendedorismo e liderança assente nos princípios neoliberais contribuiu para a consolidação da (des)ideologização do debate político, colocando os jovens, seus coletivos e organizações à mercê da colonização político-partidária, numa sociedade que, como salientou Onésimo Silveira, vigora o regime do Estado-do-partido. Isto desencadeou uma profunda crise de conhecimento que, a nosso ver, só se consegue mudar a partir de um intensivo trabalho de politização com vista à libertação das mentes, a que se segue a libertação do ser, do saber e do poder. Afinal, como tão bem sublinhou Cabral, a liberdade não existe para ser doada, mas conquistada. Mas, tal empreitada só pode ser devidamente concretizada pela ação de um movimento político apartidário movido por uma liderança coletiva, orientado por um conhecimento concreto endógeno da realidade e dotado de uma agenda comum própria.
Publicado no Jornal A Nação, n. 890, 19 de setembro de 2024, Etc. p. 8.